A ALEGRIA DO TROTE UNIVERSITÁRIO DEVE MUDAR DE RUMO
Moacir José Sales Medrado[1]
Janeiro e fevereiro, meses de euforia universitária. Cidades inteiras se enchem de gritos de vitória, enquanto os calouros, com sorrisos que mal cabem no rosto, carregam o peso doce da aprovação. É um rito de passagem que ocorre em quase todos os cursos — as pinturas improvisadas, a lama, o cheiro de farinha no ar, as brincadeiras exageradas que ainda tentam se manter sob o manto da tradição. Há quem diga que é uma celebração justa, quase necessária. Afinal, o vestibular é um obstáculo que testa nervosismo e resistência. Quando a lista de aprovados finalmente sai, é como se um imenso peso escorregasse dos ombros. Mas será que a forma de celebração não precisa ser atualizada?
Passei outro dia por uma dessas festas de calouros. A rua era um quadro vivo: tintas espalhadas em rostos juvenis, latas de cerveja aos montes, um trote aqui, outro ali, entre risadas e gritos. A energia era contagiante, mas fiquei pensando: será que esse é o tipo de alegria que queremos perpetuar? Há um eco nisso tudo que parece nos empurrar para um passado que talvez já tenha cumprido seu papel.
Lembre-me de vários casos, dentre os quais a morte do estudante Carlos Alberto de Souza (1980), Edison Hsuch (1999) e um recente (2024) que estremeceram o país. No último caso citado, um trote violento colocou uma estudante de 21 anos na Unidade de Terapia Intensiva (UTI): sob pressão dos veteranos, ela foi forçada a ingerir uma mistura de álcool, vinagre, pó de café, mostarda, sal e pimenta. Neste caso, o que deveria ser uma brincadeira terminou com a jovem entrando em coma, com o caso somente ganhando repercussão quatro dos nove estudantes envolvidos foram expulsos da universidade. É importante ressaltar que o primeiro trote universitário no Brasil, em 1831, já levou à morte um estudante na Faculdade de Direito de Olinda, em Pernambuco.
O problema não está na comemoração, longe disso. O problema é que o mundo à nossa volta mudou, e os rituais que escolhemos para marcar nossas conquistas deveriam acompanhar o ritmo dessa mudança. Não há mais lugar para trotes cruéis; será que não estamos perdendo oportunidades de fazermos algo mais significativo, como prestigiar a ideia do Trote Cultural?
Imagine se, em vez de tinta, os calouros carregassem caixas de alimentos para doar às famílias carentes. Ou se, ao invés de lama, distribuíssem livros, sorrisos e abraços em asilos. Pense no impacto de uma fila de jovens em frente ao banco de sangue, não para marcar presença em uma foto de redes sociais, mas para doar vida. Que tipo de mensagem isso enviaria, não só para eles, mas para a sociedade? É fácil pensar que isso seria menos divertido, menos empolgante. Mas será? O que poderia ser mais emocionante do que sentir que sua vitória pessoal foi compartilhada com alguém que nem ao menos esperava por ajuda? Que tipo de trote é mais grandioso do que transformar alegria em solidariedade
Talvez o que falte seja enxergar que a comemoração, assim como a conquista, tem a capacidade de deixar marcas. Mas que tipo de marca queremos deixar? Uma mancha de lama no asfalto ou uma semente plantada na vida de alguém? E assim, enquanto os gritos de calor ecoam pelas ruas, me peguei pensando que talvez o maior grito de vitória seja aquele que, no silêncio de uma boa ação, transforma não apenas um dia, mas uma vida inteira.
[1] Engenheiro Agrônomo (UFCE), especializado em Planejamento Agrícola (SUDAM / SEPLAN – Ministério da Agricultura), Doutor em Agronomia (ESALQ / USP).